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Desabafos sobre os protestos

Três textos sobre a questão dos protestos no Rio de Janeiro, o sumiço de Amarildo (depois de ser levado para falar na UPP) e a questão da violência policial no Brasil – e seu efeito nas mães desta pátria nada gentil com suas cidadãs.

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Nota da editora: eu tenho orgulho, muito, de ter criado um grupo onde as mulheres podem se expressar de forma sincera e clara. Me emociona testemunhar exemplos de humanidade na minha vida cotidiana. Por isso pedi licença para publicar estes textos aqui. São testemunhos que contam o quanto o Brasil ainda pode mudar, se transformar e ser um lugar melhor para viver. 

Suzana Elvas, Rio de Janeiro

Escrevi esse texto (e já peço desculpas pelo desabafo, porque é isso que ele é) e compartilhei no Facebook por causa de uma coisa que a Lucia postou na TL dela. Eu acompanhei até as 3h da manhã de hoje o que estava acontecendo, literalmente, embaixo da minha janela. Chorei muito, tive medo, filmei bastante, e me lembrei de cenas que eu um dia dissera a mim mesmo nunca mais presenciar.

Por um bom tempo – incluindo quando eu era uma estagiária cheia de bons sentimentos e a caminho do meu Prêmio Esso – eu acompanhei incursões policiais. Não era nem do Rio, mas me oferecia pra qualquer plantão policial que aparecesse. Achava muito emocionante. E o que eu aprendi não foi excitante, nem emocionante. Não foi bonito, não foi construtivo. Eu vi policial derrubar porta de gente que nunca teve nada com o tráfico, e arrastar mulheres pelos cabelos até uma viela, de onde só se ouvia gritos e crianças chorando. Vi descer rapaz morto pelo Bope que estava fumando escondido da mãe na laje, se assustou e tomou um tiro no peito sem nem saber direito o que estava acontecendo.

Vi chamarem de vadia a mãe que perdeu mais um filho num tiroteio – e se soube depois que era um contínuo que o chefe prendera depois do horário pra que ele fizesse serviços pessoais. Ouvi mandarem calar a boca e parar com essa porra. PM’s impacientes com crianças chorando, no meio do fogo cruzado. Ouvi pelo celular a faxineira do lugar onde eu trabalhava avisar, a voz quase inaudível pela balbúrdia de tiros que ecoavam no único banheiro da casa, que ela não ia trabalhar porque não podia sair. Nem sequer tirar dali a única filha, de seis anos, nem o bebê que levava na barriga.

Nunca vi nenhum mídia ninja por perto. Nenhuma mídia alternativa. Das grandes, o que era apurado e escrito em quatro laudas saía – quando saía – num quadradinho com sete linhas, pra tapar buraco na página. Nunca vi, nesses anos todos em que o celular existe e se popularizou, vídeo do YouTube mostrando o domínio do terror que a PM impôs nas comunidades que “não pagam imposto” (e, sim, eles pagam). Nunca vi ninguém gravar o Bope, tarde da noite, ajoelhado nas esquinas da Maré, pronto pra entrar atirando – coisa que eu vi, de dentro do táxi, voltando de uma viagem, enquanto o motorista alcançava quase 180 Km/h e avisava aos outros pelo rádio que “o bicho tá pegando”. Se existem esses vídeos, nunca vi serem compartilhados. Nunca vi receberem centenas de comentários. Nunca vi sendo usados como meio de pressão para disciplinar uma força policial que segue tudo, menos a lei. Efetivo que, se conhece a lei, prefere ignorá-la, com o respaldo de quem dorme à noite sem se preocupar se alguém vai enfiar o pé na sua porta, de madrugada, e arrastar seus filhos pra fora, aos gritos. Porque ninguém vai. Se isso acontecer, com certeza estará em centenas de compartilhamentos no Facebook em questão de horas, com respaldo de inúmeros vídeos no YouTube.

As chacinas de Vigário Geral e da Candelária chocaram (não acredite na gente, leia no site da Anistia Internacional: Anistia Internacional – Chacina de Vigário Geral) . Todo mundo indignou-se – e nada mudou. Não vi página do Facebook dar nome e sobrenome do Jonatha Farias da Silva , o garoto que morreu assassinado na Maré e cuja única voz que se levantou para que ele não ficasse marcado como “elemento que foi baleado ao confrontar a PM com arma na mão” (como consta nos relatórios da Polícia Militar) foi Yvonne Bezerra de Mello, que o ajudou a sobreviver, sem pai nem mãe, como engraxate. Ela não esqueceu os meninos da Candelária, nem as famílias de Vigário Geral. Deve ser a única. Ninguém perguntou – nem a OAB, nem a ABI, nem os Ninjas, nem ninguém: “Onde está o assassino de Jonatha? Onde está o inquérito policial? Onde está a Justiça? Onde está a ordem publica e a garantia de que isso nunca mais vai acontecer?”

Mas eu vi um monte de gente falando do absurdo das balas de borracha. Do absurdo do gás lacrimogêneo que acabou com a roda de chope, com o jantar, com a paz. Do absurdo das vitrines quebradas no pedaço mais rico da cidade. Do absurdo dos garotos brancos, de classe média, universitários, bem alimentados e bem informados, que foram presos por “mostrar a verdade.” Sei nome e sobrenome de todos eles. Bastaram menos que cinco noites de terror para o Rio de Janeiro se levantar contra a truculência da PM. Contra os desmandos do policial que prende mídia ninja porque este lhe virou as costas. Que encurrala mulheres e crianças numa loja e exige documentos. Que percorre as ruas caçando quem esteja nas calçadas.

Troque as balas de borracha por munição real. Troque os bairros da Zona Sul pelas favelas e pela Baixada. Troque a cor da pele das pessoas.

Bem-vindo ao Rio de Janeiro de todos os tempos.

 

Gabriela (@gabriela_arc), Salvador

Bem vindo ao Brasil de todos os tempos. Este é o cenário daqui da Bahia também. Não sou jornalista, mas já testemunhei algumas coisas e passei por outras também e confesso há muito tempo vivemos em estado de sítio. A diferença: Rio, SP aparecem na TV. Morre mais gente em Simões Filho que no Iraque, quando saiu na Exame, saiu em noticiários locais. A violência em Simões Filho, Candeias e outras cidades de interior é terrível. Assim como, a violência na Zona Sul é cruel mas lamentavelmente só aparecem os pontos turísticos.

Felizmente estão acontecendo protestos e principalmente há reportagens internacionais incompatíveis aos principais veículos, para capitanear a mudança que pode vir em outubro. Não podemos nos calar.

Até quando continuaremos a aceitar o medo?!

 

Letícia Massula, São Paulo

Suzana,

Eu quase nunca falo nada aqui, participo pouco (não consigo administrar meu tempo a ponto de poder participar de uma lista assim, me perco sempre…) e por conta disso muitas vezes não acho legítimo nem ler as conversas, mas estou muito perturbada com tudo que vem acontecendo no Rio e li seu texto.

Parabéns. Um alento ver gente que pensa como você. Que vai além e coloca o dedo na ferida.

Coordenei durante 2 anos um centro para familiares de vitimas de homicídio e latrocínio e o que mais me doía – além de assistir cotidianamente a dor de mães que perderam violentamente seus filhos (quase a totalidade pobres de periferia, um numero enorme executados pela polícia) – era assistir a indiferença da sociedade, o descaso, a falta de identificação… Milhares de vezes me afirmaram em tom de pergunta: mas… quem morre em chacina… em geral tem culpa no cartório, não é mesmo?

Doía cada vez que alguém, para legitimar a nossa atuação (apoio as vítimas e familiares), destacava que eram vítimas “inocentes” (aliás, tem expressão mais bizarra que “morte de inocentes”?). Me embrulhava o estômago ver que a maior parte das pessoas pensava exatamente assim…

Eu ficava puta cada vez que me chamavam para mesas de debate para falar “sobre o aumento da violência urbana” quando morria alguém de classe média, voltando da faculdade, de carro, no semáforo… Eu sempre frisava nessas falas que não havia aumento da violência, que ela sempre esteve lá… que morria gente todo dia na periferia (e pensava comigo: de vez em quando a merda chega até nós, e morre um da classe média).

Doía sentir que mesmo entre pessoas relativamente próximas no fundo, no fundo, havia um certo alívio a cada chacina, uma sensação de “que bom que eles se matam entre eles mesmos”, quanto mais se matarem nas margens, melhor… que fiquem lá, nas margens mesmo… que nunca cheguem aqui, ao centro.

Não estou de forma alguma comparando e desqualificando uma morte e outra morte… sofro pelo jovem de classe média que morre no sinaleiro da mesma forma que sofro pelo jovem da favela executado pela polícia (seja ele portador de bons ou maus antecedentes). Para mim cada vez que morre alguém violentamente um pouco da minha humanidade morre junto, porque sempre é um passo a mais rumo ao animal cruel que nos habita.

Nesses dias com tudo que estamos assistindo esse ponto voltou a ficar latente. Observar novamente que a maior parte das pessoas distingue, compara e faz um julgamento moral sobre quem “merece” e quem “não merece” morrer. Que vida e morte continua a ser uma questão meritória na cabeça das pessoas, como se a vida não fosse um direito humano e sim um bônus por bom comportamento.

Acho que foi mais ao menos por aí que um dia eu decidi que não iria mais trabalhar com direitos humanos, para não ter que lidar com isso no cotidiano. Não consigo ter tranquilidade para falar sobre isso, para argumentar de forma civilizada, me toca muito fundo.

Por tudo isso, adorei seu texto, continue expondo as feridas. É necessário. Parabéns.

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