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Maternidade das cavernas no Século XXI: eu não moro em Bedrock

Alerta: este artigo foi proposto pela Joana Coccarelli ao LuluzinhaCamp. Conversamos e decidimos que esta polêmica vale a pena. Use os comentários com todo o respeito, ok?

woman giving birth, de Travis S. em CC
cerâmica de uma mulher Nayarit em trabalho de parto

foto: Travis S., em CC

Virar mãe é ingressar na bolha do não dito. Goste a mulher ou não da experiência da gravidez, ela certamente viverá uma montanha (barriga?) de sensações que não se expressam em palavras. Nasce o bebê e lá se vão mais de dois anos até que ele comece a verbalizar-se de forma inteligível. Virar mãe é o esforço – às vezes, um simples dom – de operar com base em climas e tentativas. “Acho que é isso”, “É isso!”, “Não, não é”, “Vou tentar de novo”.

A via mais cruel dessa realidade é a da expectativa social, sempre tácita mas agressivamente vigilante e coerciva, principalmente em relação às mães que se reservam o direito de recusar a cartilha de especialistas e outras mães para “achar que é isso”, “tentar de novo” e, também, pensar nela própria. O senso comum, inconscientemente arraigado em todas as boas pessoas que nos cercam, repousa sobre a suposição freudiana da essência masoquista comum a toda mulher. Todos, em particular a grande maioria de mães, espera que novas mães enfrentem de bom grado e sem maiores choques os sacrifícios da maternidade. Na verdade, quanto mais sacrifício, melhor a mãe, e mais sortuda a criança. Não se adaptar às noites em claro, negociar anestesia durante o parto normal (ou mesmo eleger a cesariana de antemão), abrir mão do aleitamento ao seio e outros hábitos menores, como apelar para chupeta, contratar babá e preferir fraldas descartáveis às de pano são práticas hoje recebidas com reticências, narizes torcidos e sobrancelhas em pé em todos os círculos e níveis sociais – condenações veladas capazes de causar enorme insegurança às mães, principalmente as de primeira viagem.

Na contramão de um mundo cuja ordem do dia é a diversidade, vivemos a homogenia da maternidade naturalista, verde, de “volta às origens”, onde alternativas artificiais adotadas pela própria mãe para melhor se adaptar à estafante vida com o bebê são pessimamente vistas. O endeusamento de práticas como o parto normal à sangue frio (na Europa, a febre do parto em casa), amamentação exclusiva no peito, papinhas unicamente feitas em casa, cama compartilhada com os pais, horror a artifícios como chupetas e mamadeiras e a ressurreição das fraldas de pano levou a mãe do século XXI de volta para as cavernas, ignorando completamente o imenso choque que é passar de um ser humano autônomo para uma realidade Flinstones já no trabalho de parto. A transição de mulher para mãe sempre é pesada, mas não deveria ser esse pedregulho todo. Dizem que o compromisso é para com o bem-estar do bebê, mas se esquecem que a mãe continua sendo parte integrante do ser bebê por muitos meses, e seu mínimo bem-estar constitui em grande parte o do filho.

O inegável sexismo que acompanha o dogma naturalista fica ainda mais evidente quando mães em tempo integral se constrangem ao saber que outra mulher pretende, sim, voltar a trabalhar fora de casa. Ela não se constrange por ela própria dedicar indefinidamente todo seu tempo ao próprio filho (e a cozinhar papinhas, lavar centenas de fraldas de pano, etc), mas pela outra mãe, deixando subentendido que um tipo de abandono ou negligência está para acontecer. “O filho é visto como se não fosse um ser social ligado também ao pai, aos outros membros da família e da sociedade”, escreveu a filósofa Marcia Tiburi sobre o assunto.

É mais que evidente que há mulheres que se identificam genuinamente com tais métodos de maternidade; há nelas uma espécie de compreensão e complacência para com a dor e com a priorização da criança acima de qualquer coisa (mesmo que possivelmente a despeito dela própria e, conseqüentemente, de seu parceiro e vida profissional). O problema não é este. Existe todo tipo de gente, com todo tipo de preferência no mundo. O problema é a predominância brutal desse pequeno grupo sobre uma maioria esmagadora de mulheres que simplesmente não se encaixa nele. De modo que muitas delas o seguirão sob enorme risco de esvaziar o vínculo com o filho, já que não se sentem livres para buscar com ele um meio termo (uma mãe tranqüila é sinônimo de filho tranqüilo, já que houve separação de corpos mas não de afetos); muitas outras não agüentarão a barra mas mentirão, evitando a desaprovação geral; algumas chegarão a questionar a qualidade de seus sentimentos pela criança, uma vez que não fazem “nada certo”; e outras, como eu, serão vistas como mães rebeldes e insistirão que o método está sendo supervalorizado em detrimento do afeto; que o amor não está no mamilo de onde sai o leite, mas no coração que fica logo ali atrás, desmistificando a amamentação como única forma de criar vínculos afetivos “inestimáveis”. Forma não é afeto, embora possa vir a ser. Forma é essencialmente forma.

A noção absurda de que a mulher está inexoravelmente predestinada ao sofrimento está se confundindo com a idéia perigosa de “necessidade de sofrimento para a afirmação do ser mulher” – algo imoral no pós-feminismo. Sugiro que as militantes do parto em casa/ normal sem anestesia se alinhem completamente à ideologia passando a negar, também, medicamentos que aliviam cólicas, enxaquecas ou cirurgias invasivas mais sérias. Por que a dor é exclusividade da maternidade?

Temo que a tirania naturalista da maternidade esteja achatando uma das experiências mais multidimensionais que mães e filhos podem criar juntos. Dores excruciantes e sacrifícios sem limites estão roubando um espaço que também poderia conter muitos afetos únicos e contemplação de significados afirmativos – sem contar com a identidade da mulher que, passada a primeira infância do bebê, poderá revelar-se muito mais preciosa do que ela julgava quando dedicava-se ao filho e ao filho apenas.

Filho que, ao usufruir de práticas e atenções massivas e ininterruptas, corre grande risco de se tornar um pequeno egoísta, míni troglodita, Bambam e Pedrita do novo milênio, e não uma criança de fato mais saudável, adaptável, confiante e potencialmente feliz. Não seria essa a mais lamentável ironia da “maternidade volta às origens”?

Artigo escrito por Joana Coccarelli, carioca, jornalista, casada, mãe, 34 anos.
formada em comunicação social com mba em marketing.
colaboradora de inúmeros sites de cultura, comportamento e arte do eixo rio – s. paulo – recife, com destaque para os extintos mood (i-best), zuvuya, cabezamarginal e o ativo revistaogrito; e blogueira desde 2002.
artista plástica com foco em colagens, tendo participado de exposições e publicações impressas.

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Antes e depois

Minha avó era um ser humano caricato. Do alto de seu 1m50, estava sempre elegante. Perder a pose, jamais. Seus olhos, dois faroletes azuis, brilhavam acima do horizonte. Mal posso contabilizar quantas horas passei me perdendo em seu armário. Tudo tinha cheiro de Europa. Tudo tinha textura de Europa. Mas, pra mim, era simplesmente o armário da minha avó.

Era uma mulher muito dura. Sobrevivente de guerra, viveu no Gueto de Varsóvia, antes, durante e depois do levante do gueto. Amargava as histórias daquela época e não abria o jogo. Preferia não conversar sobre esse período, embora conservasse marcas típicas de quem passou por aquilo. Jogar comida fora? Jamais. Lembro, ainda criança, de ver a minha avó guardando na geladeira um saquinho de chá usado, porque chá bom dava para duas xícaras e poderia ser utilizado um tempo depois. Achava aquilo tudo esquisito, mas minha normalidade em relação ao mundo pós-guerra simplesmente não incitava muita indignação.

Jogava tranca com as amigas. Chegavam, cumprimentavam-se em polonês, tomavam um chá e chegava a hora da toalha de veludo verde. Eu ficava ao lado, na altura da mesa, sentindo-me privilegiada por poder ver as cartas de todo mundo. Em meio ao laquê, em meio ao Chanel 5 (sim, tudo tinha cheiro de Europa), em meio aos braços tatuados, eu passava tardes e mais tardes por lá. Afinal, era simplesmente a casa da minha avó.

Faço parte de uma das últimas gerações que teve contato com quem viveu a guerra. O mais louco de tudo é que eu só consegui me dar conta disso mais velha, quando finalmente entendi a grandeza da guerra. Criança, eu sempre achei a minha avó meio de mal com a vida, meio amarga, meio negativa. Mal sabia eu, na alegrias dos momentos do carteado, que a reunião daquelas mulheres na mesa só aconteceu por conta de um outro jogo, muito mais sujo.

***

Na foto, minha avó no Gueto, em 1941. Foto do arquivo do Museu Yad Vashem.

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Filme: Como Você Sabe

Assim como eu, você deve estar cansad@ de comédias românticas, certo? Sempre tão iguais. Confesso que há algum tempo tenho muita preguiça de vê-las. Porém, se você tem uma Mãe que adora comédias românticas, é bem provável que de tempos em tempos verá alguma. E a desse fim de semana foi Como Você Sabe, com a fofa Reese Whiterspoon.

Cena do Filme Como Você Sabe. Divulgação.

Para minha grande surpresa essa é uma comédia romântica com alguns pequenos toques de originalidade. É claro que há um final feliz, mas poderia haver outros. E Lisa não é a heroína típica, ela não cairá de amores por um ótimo pretendente, para então algo ou alguém separá-los, para enfim ficarem juntos no final. Lisa está descobrindo o que é gostar de alguém e, como a maioria das pessoas, não tem tanta certeza sobre o que é isso.

Lisa é jogadora de beisebol. Passou sua vida inteira jogando e amando jogar beisebol. Curtiu a vida como qualquer garota. Porém, a idade chegou, seu desempenho não é mais o mesmo e ela foi cortada da principal equipe americana. Um baque para o qual não se preparou. Suas amigas de time estão todas ao seu lado, assim como a ex-treinadora, mas chegou a hora de Lisa pensar em outras coisas. E aí no meio dessa mudança repentina aparecem Matty e George.

Não vou me alongar sobre o triãngulo amoroso, o interessante do filme é a maneira como Lisa vai construindo seus sentimentos pelos dois. Saindo, conhecendo, conversando e ao mesmo tempo imersa em dúvidas sobre sua vida. Talvez Lisa seja uma mulher muito real para comédias românticas. Pois ela não tem certezas, não tem como grande sonho casar e ter filhos, não sabe muito bem o que fazer com sua carreira agora, mas está lá vivendo, fazendo planos e vendo que não há respostas para tudo. Comendo, rindo, transando, pagando mico. Uma mulher de 31 anos que não precisa descobrir tudo agora, ela pode continuar pegando alguns ônibus ou táxis quando quiser. Não é o melhor filme do ano, mas um frescor entre tantos relacionamentos de ficção enlatados.

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Cabeça de mulher

Eram quatro mulheres no total. Duas brasileiras e duas turcas. As brasileiras estavam curiosíssimas a respeito daquele lenço na cabeça. Será que era muito quente? Será que incomodava ficar com aquilo o dia inteiro? Será que usavam por vontade própria? A barreira da língua parecia impedí-las de começar um diálogo. Estavam, duas a duas, sentadas no pátio de uma mesquita, em Istambul. Apenas se olhando, como quem não quer nada, no frio do mármore e no quente do sol.

As turcas então se aproximaram. Perguntaram se poderiam fazer uma entrevista conosco. Sim, claro! Disseram ser estudantes de turismo com uma lição de casa: entrevistar estrangeiros e ver o que eles pensam do seu país. Respondemos, rimos e filmamos. Contamos nossas primeiras impressões sobre a Turquia muçulmana. Mesquitas gigantes e lindas, história da humanidade borbulhando, cheiro de amêndoas queimadas aos pés da melancolia do Bósforo. Peixe, pimenta e tomate. Povo solícito e mulheres… cobertas. Elas sorriram e terminaram a entrevista. Agradeceram e foram embora.

Nos encontramos do lado de fora da mesquita, numa comemoraçãoo popular na qual as crianças encenavam danças típicas. Ataturk havia criado o dia da criança e, nele, os pequenos eram celebrados publicamente. Bem bonito de ver. Trocamos olhares com nossas amigas e elas se reaproximaram. Se ofereceram para serem nossas “guias turísticas” por algumas horas. Aceitamos. Não sei ao certo o que nos motivava mais: o fato de ter nativos mostrando o país ou o fato de finalmente podermos perguntar a respeito do lenço.

Entre as ruas de pedras conversamos sobre tudo. Impressionante como mulher consegue aprofundar as histórias em menos de 5 minutos de convivência. Uma delas, a mais tradicional, estava procurando namorado. Usava saia e lenço. Dizia usar porque queria. Porque acredita que aquilo tem uma função social e, que no fundo, achava inclusive charmoso. Preferia os de seda, mais brilhantes. A outra era mais liberal – no sentido ocidental da palavra – e usava calça jeans e lenço na cabeça “somente quando estava em casa”. Disse que não queria namorar, que havia crescido para ser livre. A outra só respondia “não quer namorar POR ENQUANTO”. Enquanto caminhávamos em direção a uma casa de chá, conhecíamos duas meninas tão parecidas quanto nós. Com as mesmas dúvidas. Com as mesmas indagações. Com os mesmos dilemas. E nessa hora percebemos que aqueles tecidos nada mais eram do que representações plásticas de um outro tipo de lenço: o invisível.

Qual é o teu lenço?

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Mídia Social, Gênero e Cultura Livre.

Johanna Blakley é vice-diretora do Norman Lear Center, um instituto de pesquisa que explora a convergência entre comércio, entretenimento e sociedade. Atualmente, Blakley tem como foco de suas pesquisas o impacto da mídia e do entretenimento em nosso mundo. Há duas palestras dela no TED (legendadas em PT-BR) que falam de coisas bem bacanas para quem está interligado nas novas possibilidades da rede.

A mídia social e o fim do gênero

Quando falamos de mídia de massa e entretenimento, é possível ver divisões no mercado baseadas em idéias estereotipadas e limitadas. Um exemplo, homens gostam de filmes de ação, mulheres gostam de romance. Padrões bobos e algumas vezes degradantes que são reforçados todos os dias. A mídia e a publicidade mostram um espelho distorcido de nossas vidas. Não há pluralidade, pois métodos rígidos de segmentação ainda são utilizados para mensurar consumidores e restringí-los em rótulos. O que vemos atualmente, é que aplicações de mídias sociais podem nos libertar destes conceitos limitados. Saber o que entretem as pessoas, como se divertem ou que fazem em seu tempo livre é importante para compreender o mundo atualmente.

Nas redes sociais as pessoas não se conectam de acordo com seus perfis demográficos, mas por meio de seus gostos e interesses. Para a maioria das pessoas interessa saber mais qual seu seriado favorito, do que quantos anos você tem. Analisar a quantidade de cliques em um site não traz informações como idade, gênero ou renda. Porém, analisar interações online produz informação sobre o que você faz online, do que gosta, o que lhe interessa. Na internet, pessoas se juntam ao redor de assuntos que elas gostam, seja uma banda, um seriado ou um time de futebol. E o que vemos é que valores e interesses são agregadores muito mais poderosos  entre seres humanos do que categorias demográficas. As mulheres são maioria nas redes sociais. Além de superarem os homens, gastam muito mais tempo nesses sites. O resultado disso será que as empresas de mídia contratarão cada vez mais mulheres, pois perceberão que isso é importante para seu negócio. E essas mulheres serão responsáveis por acabar com categorias clichês, especialmente clichês femininos, pois elas sabem o quanto isso é limitador.

Lições de uma cultura livre da moda

Na indústria da moda há pouca proteção de propriedade intelectual.  Há proteção de marca registrada, mas não há proteção de direito autoral e nem proteção de patente. Pode-se copiar qualquer roupa e vender como seu próprio desenho. A única coisa que não podem copiar é a etiqueta da marca, por isso vemos tantas logos espalhadas ou chamativas pelos produtos. A razão para não haver direito autoral na moda, nos Estados Unidos, é que a justiça decidiu que vestuário é muito utilitário para se qualificar na proteção de direito autoral. Não queriam que poucos designers fossem donos de partes fundamentais de nossas roupas, senão todos teriam que licenciar aquele punho ou aquela manga, porque ela pertence a uma pessoa.

A lógica do direito autoral presume que sem o advento da propriedade, não há incentivos para inovar. Porém, justamente por não haver direitos autorais na indústria da moda, os designers elevaram o desenho utilitário, criaram novas formas sobre o padrão. E transformaram roupas em arte, gerando sucesso de crítica e lucro. Há um processo criativo amplo e aberto. Escultores, fotógrafos, cineastas ou músicos ficam limitados a determinadas escolhas, enquanto designers de moda podem ter acesso a todas as peças já criadas, podem pegar qualquer elemento de qualquer vestuário e incorporá-lo ao seu trabalho. A consequência de uma cultura onde se copia livremente é o estabelecimento de tendências. Além do que, a inspiração vem das ruas, do que as pessoas usam, como mostram os diversos blogs de fashion street. Isso faz com que a indústria seja alimentada de cima para baixo e de baixo para cima.

Power and Equality. Foto de Cheryl Coward no Flickr, em Creative Commons.

Mulheres e o novo momento

Esses foram os principais apontamentos que fiz vendo as duas palestras. Acredito que o advento da tecnologia digital veio revolucionar a maneira como definimos direito autoral. Enquanto as redes sociais são fundamentais na divulgação de informações e na interação entre pessoas. Concordando ou não com as idéias de Johanna Blakley, suas falas me fizeram pensar bastante. Interessante notar que as mulheres são as principais consumidoras das redes sociais e da moda. Acredito que dificilmente estamos vivendo um Matriarcado.com, mas é importante perceber como estamos na crista da onda, como o poder provem da igualdade. Como mulheres estão absorvendo as novas formas de comunicação e consumindo produtos gerados numa cultura livre e criativa. Acredito que o diferencial no momento, que contribui para o crescimento das mulheres nesses campos, é que cada dia mais vivemos num mundo de idéias e não mais num mundo de objetos fixos e rígidos.